sábado, 23 de abril de 2011

Crítica no Jornal A Tarde sobre Fricção: Quando esse olho vê: corpo, guerra, dor e erotismo no espetáculo “Fricção”






publicado em 22/04/2011
A tarde, caderno 2+
Milena Britto – Professora adjunta da Universidade Federal da Bahia

O espetáculo “Fricção”, concebido e performatizado pela coreógrafa e dançarina Isaura Tupiniquim, traz à discussão os corpos tensionados por forças trágicas e uma condição da platéia: o voyeurismo.
Com o corpo sendo a passagem de tudo, a técnica de Isaura está ali, aprimorada pela sua trajetória no balé e dança moderna, mas as experiências que deixam o corpo em “estados de” são o que tornam os seus movimentos efetivos, viscerais.
O aspecto conceitual - desenvolvido junto ao filósofo Washington Drummond- revela a profundidade da performer: as referências para esse corpo tensionado em camadas históricas estariam da filosofia à midia; com entradas marcadas pelo erotismo de Bataille, pelos registros de guerras, por uma certa plástica hitleriana, pelo dadaísmo da banda alemã Einstürzende Neubauten, o neosurrealismo de um filme como Eraserhead, de David Lynch e, no centro de tudo, a estética “tecnológica” das máquinas desse tempo de guerras.
Há beleza em seus movimentos de homem-máquina, em seu balé sutil, em seu arquear falsamente desengonçado, o seu gênero que se indefine e se subjetiva ao mesmo tempo. Há dor, solidão, angústia, surpresa, medo.
A iluminação é assinada pelo design de luz Márcio Nonato, artista que tem uma trajetória junto ao grupo pluriartístico Dimenti. Márcio acentua os sentimentos do corpo em foco captando detalhes e deixando-os suspensos, próximos à platéia; por outro lado, desde fora, o corpo em cena e os movimentos agigantam-se.
O voyuerismo selvagem vai sendo atacado e, ao mesmo tempo, recuperado como parte de um processo criativo. O dispositivo de espionar é parte de uma maquiavélica relação entre os sujeitos.
A perversão disso é o que definiria a condição “humana” ou “desumana” do corpo especulado. Especialmente aquele em meio a guerras; as de hoje, brutalmente bélicas ou invisíveis, e, mais atrás, o que aconteceu nos campos de concentração, as marchas espetaculares de exércitos, a dança dos canhões, o balé dos soldados, o sexo desprezado e pervertido, as violações e profanações do corpo, o sangue – ou o leite - derramado em nome da paz: todas as guerras que estão em nossa memória coletiva, toda a versação institucionalizada da História da Moral.
O cenário é mínimo. O figurino tem força nas “próteses” desenhadas por Gaio Matos. O fetiche, o uniforme, a máquina são signos elaborados com pouco, num grande acerto do artista.
A ambientação sonora, operada pela Dj Lívia Losd, joga-nos nas geografias desérticas dos campos de guerras, das prisões, no silêncio espantoso de corpos que desaparecem e ressurgem. Agudamente administra os sentimentos da performer através de uma combinação de efeito musical que exaspera a platéia e conduz os movimentos ajustando-os aos sentidos.
Com a base na música conceitual da banda Einstürzende Neubauten, os efeitos criados são sempre únicos, aventando-se em cada espetáculo outra possibilidade de dizer o mesmo. Os vidros, os metais, as correntes que se arrastam, o eco de batidas secas ou desordenadas, a ópera, o silêncio... sob a música, corpo e mente são prisioneiros da experiência, não sem resistência. Estamos friccionando e friccionados e a Dj capta bem esse processo no palco e fora dele.
As transições de cenas são também de sentimento e de experiência. O corpo pode ser máquina, mas ele vai se descobrir humano e outra vez se converter em máquina. Camadas de processos históricos.
Isaura Tupiniquim traz para a arte contemporânea da terra diferença com profundidade. Arrisca bastante, aliás, o risco tem sido a sua marca nas performances assinadas por ela, que pesquisa o corpo em seus entraves contemporâneos, nessas tensões onipresentes em nosso tempo. Ela recusa-se à paz e à beleza contemplativa, exaspera-se, convulsiona-se em cena. Ela transita nos depósitos de restos de corpos modificados pela história dos conflitos, metáfora para aquilo que restou de nosso sonho de progresso.
Alguns poucos momentos saíram do eixo, em transições muito longas, uma marca do espetáculo. Algumas vezes, um movimento transicional tarda muito e se repete, retirando um pouco aquilo que seria parte da mesma história: a surpresa. Um corpo pode ser transformado também de maneira fulminante, como um braço que se vai com uma bomba ou um orgasmo que faz o rosto retorcer-se em segundos.Por outro lado, alguns momentos desses são a jóia da cena.
Irônica, a artista concede um momento de beleza plástica mergulhada em audácia: compõe com fragmentos de sentido, iluminação e forma, uma imagem viva, um quadro Batailliano - aliás, a “História do Olho” está presente numa referência plástica na cena final do leite. O espetáculo tem nos dois “finais” um ápice contraditório: enquanto uma imagem viva de seu corpo se ergue pelo sentido da grande ironia, um derrière virado à platéia nos largos segundos que a iluminação eterniza, o ato rege a liberdade daquele ser recém autônomo; e, para encerrar o triunfo de ter deixado o expectador preso até ali, de presente para a platéia uma prova de seu próprio veneno, imagens trágicas, fechando o ciclo daquele acordo: o voyeur que invade a privacidade, que consome as guerras, as cenas midiáticas das tragédias é o mesmo que espiona feliz e excitado o sexo do outro pela fechadura. Perversão na dor e no erotismo. Bom espetáculo!


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